NÃO ALIMENTEM

Bots de Internet
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Texto Originalmente Publicado na Revista Vírus

O antropólogo Joseph Campbell, autor de O Herói de Mil Faces e O Mito do Herói, descreveu em 3 estágios segmentados em seis etapas, a jornada do herói. Campbell, e sua lógica estruturalista e jungiana, estudou diversas culturas para concluir que muitos dos mitos, de Prometeus a Jesus e Buda, tem a mesma estrutura, um processo que retirava o herói do seu mundo, o colocava em provações que o elevavam e encerrava com o retorno ao mundo original, trazendo as virtudes adquiridas nas jornadas, chamado de Elixir.

Mais relevante: para ele, a jornada era um reflexo da nossa própria forma de interpretar as nossas vidas, ele seria resposta da nossa própria vontade de escrever o roteiro da nossa vida como uma jornada heróica.

Segunda essa lógica, somos afoitos a ver as desventuras de um indivíduo porque vivenciamos nossa própria vida como as desventuras do eu. Existe outra lógica igualmente simples: um roteiro é feito por uma pessoa que, dessa forma, escreve o herói como uma personalidade/individualidade. Mas, óbvio, o mundo não é a história de um indivíduo mas a soma de histórias que formam um todo, onde a própria individualidade é uma criação ideológica que nos obscura a difícil visão de um todo, de uma resultante da soma das vontades e estruturas ou qualquer aspecto que queiramos realçar para definir o todo.

Essa é uma das possíveis origens de um conflito cada vez mais comum em nossas redes, a disputa entre fanfics (abreviatura de “ficção feita por fãs”), relatos individuais, maniqueísmos versus análises políticas, dados, estatísticas, pensamentos. Existe uma expressão em inglês que também nos dá uma boa dica sobre esse fenômeno: confirmation bias, ou distorção de confirmação. Distorção de confirmação é a ideia de que a maioria das coisas que lemos e gostamos(e, consequentemente, compartilhamos) não são informações novas que nos interessam mas informações que confirmam aquilo que já acreditamos. Mesmo que sejam mentiras ou histórias piegas ou uma visão distorcida de bem contra o mal: compartilhamos porque elas falam aquilo que apenas queríamos que fosse confirmado por alguém.

E, assim, nasce e se fortalece essa tendência de internet. E explorando isso nascem subcelebridades de internet.

Temos uma proliferação de cartunistas maniqueístas, boa parte deles “progressistas” e “de esquerda”. É lindo ver os poderosos que odiamos retratados com sobrancelhas proeminentes e aquela eterna cara de serial killer, indo pessoalmente acima de rolos compressores destruir a vida de pessoas que empatizamos. Por sua vez, essas pessoas são sempre retratadas como coitados ou como orgulhosos lutadores.

Temos uma proliferação de fanfiqueiros, gente que escreve crônicas afirmando ser verdade. Em geral, nessas crônicas-pós-verdadeiras o povo, muitas vezes representadas por uma criança, é bondoso. Mas há um algoz, um conservador, que não tem nenhuma sutileza em expor seu autoritarismo e maldade.

E, claro, existe o “cara que sabe de verdade como a vida do pobre/negro/mulher é”. Esse tipo de fanfiqueiro se arvora na qualidade de representante genuíno do povo e discordar dele é ser automaticamente anti-povo. Essa não deixa de ser uma forma de intermediação, de negação do direito do povo à voz, de silenciamento da opinião popular. Esteticamente, esse tipo de fanfiqueiro é marcado pelo uso forçado de gírias, principalmente a que descrevam um inimigo. Curiosamente, o inimigo não é o poderoso, não é membro da classe dominante, não são aqueles que criam a pobreza. O inimigo curiosamente é quem, de alguma forma, disputa o espaço de representação das angústias do povo. Ou, simplesmente, quem luta contra o sofrimento do povo e sugere uma alternativa diferente da do “fanfiqueiro povão de verdade”. Em geral, é a própria esquerda o grande vilão.

Eu poderia ficar aqui citando tipo e dando exemplos. Mas esse texto não é sobre isso. É sobre nosso papel no crescimento desse tipo de figuras. Nós alimentamos essas coisas toda vez que compartilhamos um desses textos ou cartuns. Quando compartilhamos uma mentira dessas, incentivamos a criação de mais e mais mentiras como essas. Precisamos inverter essa linha de incentivo.

Dia desses, li uma entrevista de um cineasta que eu admiro no qual ele comete um sincerícidio: “ver meu novo filme é um ato cívico”. Ora, segundo essa narrativa, apenas ver o filme, e não fazer nada sobre o assunto do filme, seria um ato rebelde. A lógica é a mesma: compartilhar uma pós-Essas narrativas maniqueístas escondem a complexidade da realidade. De outro lado, análises políticas buscam desvendar essa complexidade. A quem interessa que a realidade seja mascarada? Mesmo mentiras que ressaltem elementos que queremos que sejam revelados não nos ajudam: quando desmascaradas, elas tendem a danificar nosso próprio ponto de vista. E, se quisermos que as pessoas saiam das cadeiras de cinema e façam algo a mais, elas naturalmente irão se defrontar com a realidade e, portanto, desmascarar as fanfics. Nosso próprio objetivo de transformação social desmonta as fanfics.

Compartilhar informações e análises políticas capazes de dar ferramenta uns aos outros para lutar contra o domínio vigente é importante. Compartilhar histórias ficcionais não instrumentaliza ninguém a nada, apenas enche de vãs palavras muitas páginas e de mais confusões as timelines.

No tratado de 1981 “Simulacros e Simulações”, Jean Baudrillard afirma que nossa sociedade substituiu toda a realidade por símbolos e signos. Segundo ele, nas sociedades anteriores, reproduziam-se ficções sobre verdades. No capitalismo contemporâneo, as ficções ganham vida própria, os simulacros passam a se antecipar à realidade e a distinção entre realidade e representação se esvai. Mas qual o sentido disso?

Bem, um mundo onde não haja discussão acerca do real e de suas consequências é um mundo imune a transformações.

Não era preciso nem ir tão longe. Na internet brasileira, hoje, os maniqueísmos ganharam vida própria, passaram a disputar entre si, em brigas intermináveis. Eu até chamaria de infantilizadas. Ao fim e ao cabo, vivemos na fantasia da luta entre heróis, personagens fictícios que são reflexos de seus criadores, disputando quem será o atual mito. Mas são mil faces do mesmo mito.

E, lembrando Fernando Pessoa, o mito é o nada(o inexistente, o supérfluo, o caminho estéril que não nos levará a nenhuma transformação social) que é tudo(no caso, o central de nossa disputa política, o dreno de nossas energias).


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