A Criação do Identitarismo

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Na Virgínia, nos anos 1600, Anthony Johnson, um homem negro, garantiu sua liberdade da servidão contratada, adquiriu terras e tornou-se um membro respeitado de sua comunidade. Elizabeth Key apelou com sucesso ao sistema jurídico da colônia para libertá-la depois que ela foi injustamente escravizada. Na década de 1700, as leis e costumes da Virgínia começaram a distinguir negros e brancos, tornando impossível para a maioria dos virginianos de ascendência africana fazer o que Johnson e Key haviam feito.

Por que os legisladores da Virgínia fizeram essas mudanças? Muitos historiadores apontam para um evento conhecido como Rebelião de Bacon em 1676 como um ponto de virada. Nathaniel Bacon era um rico proprietário branco e parente do governador da Virgínia, William Berkeley. Mas Bacon e Berkeley não gostavam um do outro e discordavam sobre questões relativas à forma como a colônia deveria ser governada, incluindo a política da colônia em relação aos nativos americanos. Bacon queria que a colônia revidasse os ataques de nativos americanos em assentamentos fronteiriços e removesse todos os nativos americanos da colônia para que proprietários de terras como ele pudessem expandir suas propriedades. Berkeley temia que isso unisse todas as tribos próximas em uma guerra cara e destrutiva contra a colônia. A coroa inglesa tinha uma política clara em relação aos indígenas: não permitir que os colonos se expandissem sobre terras indígenas a oeste dos montes Apalaches. Essa foi uma das principais razões para a guerra de independência americana, pois os colonos desejavam tomar as terras indígenas, e o fizeram a partir do século XIX.

Desafiando o governador, Bacon organizou sua própria milícia, composta por servos de contrato brancos – 75% dos brancos nas Treze Colônias eram servos de contrato – e negros e escravizados negros, que se uniram em troca de sua liberdade e atacaram tribos próximas. Uma luta pelo poder ocorreu com Bacon e suas milícias de um lado e Berkeley, a Virginia House of Burgesses e o restante da elite da colônia do outro. Meses de conflito se seguiram, incluindo conflitos armados entre milícias. Em setembro de 1676, a milícia de Bacon capturou Jamestown e a queimou até o chão.

Embora Bacon tenha morrido de febre um mês depois e a rebelião tenha desmoronado, os ricos plantadores da Virgínia ficaram abalados com o fato de uma milícia rebelde, que uniu servos e escravos brancos e negros, ter destruído a capital colonial.

Os eventos em Jamestown foram alarmantes para a elite plantadora, que temia profundamente a aliança multirracial de servos de contrato e escravos. A palavra Rebelião de Bacon se espalhou por toda parte, e várias outras revoltas de um tipo semelhante se seguiram. Em um esforço para proteger seu status superior e posição econômica, os plantadores mudaram sua estratégia para manter o domínio. Eles abandonaram sua forte dependência de servos de contrato em favor da importação de mais escravos negros.

Após a rebelião de Bacon, os legisladores da Virgínia começaram a fazer distinções legais entre habitantes “brancos” e “negros”. Antes disso, legalmente falando, não havia brancos nos Estados Unidos. Em documentos oficiais, podíamos encontrar os termos ingleses, irlandeses, escoceses, alemães, holandeses, mas não o termo “branco”. Não havia essa ideia de uma raça branca. Afinal, ingleses, que geralmente eram a elite das Treze Colônias, não se enxergavam como pertencentes à mesma categoria humana que irlandeses, os quais geralmente eram os servos de contrato, por exemplo.

A política oficial mudou para a escravização permanentemente dos virginianos de ascendência africana e dando aos pobres empregados e agricultores agora conhecidos como “brancos” alguns novos direitos e status. Com isso, a elite esperava separar os dois grupos e tornar menos provável que se unissem novamente em rebelião. Logo após a rebelião de Bacon, eles passam a distinguir cada vez mais as pessoas de ascendência africana de pessoas de ascendência europeia. A elite promulga leis que dizem que as pessoas de ascendência africana são escravos hereditários (o que não existia anteriormente). E cada vez mais dão algum poder a fazendeiros brancos independentes e pequenos proprietários de terras.

Na verdade, a neurose norte americana em relação a uma pureza de sangue nórdico começa aí. Hoje, 86% dos norte americanos brancos são descendentes de europeus do norte, pois, passou-se a tentar limitar de todas as formas possíveis a entrada nos Estados Unidos de europeus do leste e do sul. Essa neurose cada vez maior em relação a preocupação com uma suposta pureza de sangue nórdico vai desembocar nas ideias eugenistas americanas do século XIX, que serviram de insiração para os nazistas. O grande nome do eugenismo nordicista do século XIX foi o norte americano Madison Grant com sua obra “A Passagem da Grande Raça”, obra de cabeceira de Alfred Rosenberg.

Agora, o que é interessante sobre isso é que normalmente dizemos que escravidão e liberdade são coisas opostas – que são diametralmente opostas. Mas o que vemos aqui na Virgínia no final do século XVII em torno da Rebelião de Bacon é que liberdade e escravidão são criadas ao mesmo tempo. De acordo com o Oxford English Dictionary, a primeira aparição impressa do adjetivo “white” em referência a “um homem branco, uma pessoa de uma raça distinguida por uma pele clara” foi em 1671. Cartas coloniais e outros documentos oficiais escritos nos anos 1600 e início dos anos 1700 raramente se refere aos colonos europeus como “whites”.

À medida que o status de pessoas de ascendência africana nas colônias britânicas era desafiado e atacado, e à medida que os empregados brancos recebiam novos direitos e status, a palavra “branco” continuava sendo mais amplamente usada em documentos públicos e jornais particulares para descrever os colonos europeus. As pessoas de ascendência européia passaram a ser consideradas brancas e as de ascendência africana eram rotuladas de negras. Muitos brancos pobres de ascendência europeia começaram a se identificar, se não diretamente com os brancos ricos, certamente com a ideia de branquitude. E aqui surge essa ideia de raça branca como uma maneira de se diferenciar daquelas pessoas de pele escura, que passam a ser associadas à escravidão perpétua.

Em 1691 a da Virgínia passou a criminalizar casamentos entre pretos livres e brancos. A Virgínia, onde ocorreu a revolta de Bacon, foi a primeira colônia inglesa na América do Norte a aprovar uma lei proibindo negros livres e brancos de se casarem. A partir dali passou-se a restringir casamentos por conta da raça e não da classe social ou da condição de servitude dos pretendentes. Essas leis se espalharam pelas Treze Colônias e depois para estados que tinham abolido a escravidão.

Surgiu a ideia de que os Estados Unidos eram uma colcha de retalhos, com várias raças convivendo juntas, mas segregadas. A misigenação passou a ser oficialmente proibida e pessoas com sangue africano passaram a ser consideradas negras, não importando a aparência fenotípica. Depois, essa ideia se espalhou para as outras raças que habitavam os Estados Unidos, como indígenas e asiáticos. Um filho de pai branco e mãe asiática passava a ser asiático e não mestiço e muito menos branco.

A partir da Rebelião de Bacon, a elite norte americana passou a introduzir diversas políticas com o intuito de gerar tensões e ressentimentos entre pessoas de diferentes raças. Até hoje os Estados Unidos são um país onde as tensões raciais são bastantes claras para qualquer visitante, mesmo com Hollywood tentando vender a ideia contrária ao mundo, de que todos viveriam em harmonia como americanos. A segregação ocorre desde a questão de bairros específicos para diferentes grupos étnicos até agrupamentos universitários divididos por ancestralidade e aparência.

Mesmo que juridicamente a One Drop Rule não exista mais, socialmente os norte americanos ainda definem as pessoas pela ancestralidade não-Europeia que carregam. Muitos brasileiros ficam confusos quando se deparam com isso e não entendem por que uma pessoa como a Xuxa “passa por branca”, mas não é branca, visto que é impossível uma pessoa nascida na América Latina ser branca para um norte americano médio.

Autor do Texto – Boss Nigga

Bibliografia
BERLIN, Ira. The Making of African America: The Four Great Migrations (2010)
Idem. Generations of Captivity: A History of African American Slaves (2003)
ALEN, Theodore. The Invention of the White Race (1994)


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