A China, o Sistema Mundial e a Distopia Brasileira

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Por Fábio Reis Vianna.

Quando o almirante Cheng Ho ordenou o recolhimento de sua frota naval por volta do ano de 1424 deixou, segundo as palavras da antropóloga Abu-Lughod, “um enorme vazio de poder”. Interrompia-se ali, prematuramente, o primeiro grande projeto expansionista chinês iniciado durante a Dinastia Ming.

Após impressionantes expedições navais que alcançaram territórios tão distantes quanto o Oceano Índico e a costa da África, e em decisão ainda não totalmente esclarecida pelos estudiosos do tema, a China, abruptamente, abriria mão de protagonizar o primeiro grande projeto expansionista em escala global.

Não passariam mais do que 70 anos para que os europeus ocupassem o grande vazio deixado pelos chineses e iniciassem de fato a aventura que deu origem ao que hoje chamamos sistema mundial ou interestatal.

Seis séculos depois, a China liderada por Xi Jinping se vê numa crise sem precedentes em sua bem-sucedida história recente de líder inconteste do processo de globalização. A pandemia da Covid-19 que atinge abruptamente todo o planeta, para a China em particular, foi um duro golpe que criou um desequilíbrio em seu modelo de estabilidade política e econômica.

Nos primeiros três meses de 2020, o comércio entre a China e o resto do mundo caiu 6,4%, uma cifra impensável para os padrões chineses. Em particular, o comércio com Estados Unidos, União Europeia e Japão, declinou 18,3%, 10,4% e 8,1% respectivamente.

Mesmo com a forte diminuição do contágio dentro do território chinês, existe uma grande preocupação em acelerar a reabertura das atividades produtivas. A preocupação com o aumento da pobreza e a desestabilização política são evidentes. Em recente visita a província de Shaanxi, Xi Jinping fez questão de sublinhar em seu discurso a importância da luta contra a pobreza.

Para além dos estímulos às empresas, investimentos em infraestrutura e ajuda financeira à população, uma série de reformas estruturais é prevista para que o país consiga superar a terrível crise desencadeada pela Covid-19. Uma importante sessão anual do Congresso Nacional do Povo está prevista para o dia 22 de maio, e maiores detalhes poderão ser esmiuçados ali.

Enquanto isso, o Brasil, um dos países que outrora poderia ser considerado um dos mais importantes aliados do projeto de integração eurasiático fora da Eurásia, vive a maior crise político-econômica de toda a sua história e afunda a cada dia mais em uma guerra interna sem precedentes.

Algo que vem sendo discutido internamente entre o establishment chinês é justamente a criação de mecanismos para conter o risco de instabilidade que as tensões sociais decorrentes das dificuldades econômicas poderiam desencadear.

O Brasil já vinha passando por crises em cascata que se acumulavam ano após ano desde o mês de junho de 2013, quando o país foi alvo de um processo de desestabilização – ou guerra híbrida – que desencadeou uma série de outros eventos mais ou menos orquestrados (como o lawfare contra alvos específicos) que culminaram com a fragilização das instituições que vinham sendo fortalecidas desde a promulgação da Constituição de 1988.

Para piorar, e em contraste com a postura chinesa em procurar conter a instabilidade interna, o país assiste estupefato às atitudes erráticas do presidente Bolsonaro, sob o silêncio anuente de seu entorno orbitado por militares.

Tendo sido escolhido para ocupar o cargo máximo da República, muito provavelmente, na fatídica visita do então secretário de defesa americano, James Mattis “Mad Dog”, em agosto de 2018 (dois meses antes das eleições presidenciais), quando numa peculiar e fechada reunião entre o norte-americano e o Alto Comando das Forças Armadas deu-se a senha, e Bolsonaro foi ungido à missão de impedir a volta da esquerda e realinhar o Brasil à condição de satélite dos Estados Unidos.

Tudo leva a crer que o esgarçamento das instituições brasileiras tenha acendido um sinal de alerta no seio das Forças Armadas brasileiras que, num misto de preocupação sincera e senso de oportunidade, aproveitou o vácuo de poder para avançar na retomada de um protagonismo adormecido há mais de 30 anos.

Muitos se esquecem, mas a presença dos militares – e em especial do exército – na tradição política brasileira remonta à proclamação da República, em 1889, que abriu a série de golpes militares que nortearam todo o período republicano até os dias de hoje.

Não custa lembrar que a ocupação de cargos estratégicos pelos militares se tornou mais visível quando o atual ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, estranhamente, foi nomeado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, para o cargo de assessor especial.

Curiosamente, isso vem a ocorrer no mês de setembro de 2018 (entre a visita do secretário James Mattis e a eleição de Bolsonaro), onde Dias Toffoli afirma que teria convidado o general do exército Azevedo e Silva após solicitar uma indicação ao então comandante do exército, general Eduardo Villas Bôas.

O general Villas Bôas é o mesmo que, em abril de 2018, escrevera por meio do Twitter uma ameaça velada aos ministros da corte suprema caso julgassem procedente o pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula. No dia seguinte ao julgamento do remédio constitucional, o ex-presidente Lula teria sua prisão decretada pelo então juiz Sergio Moro.

Como uma espécie de Aiatolá, o general Villas Bôas reproduz um personagem clássico da política brasileira até os anos 50: o chefe militar.

Naquele período, personificado pela figura do brigadeiro Eduardo Gomes, o chefe militar era uma espécie de “guardião da moral e dos bons costumes” da nação e justificava a ação política dos militares como detentores de um “poder moderador” não escrito. Desta forma, os militares se auto atribuíam o exercício da função do “poder de veto” da República. No contexto da guerra fria, o poder de veto costumava ser invocado para frear qualquer indício de ameaça comunista.

Passados mais de 60 anos, e quando muitos pensavam que as Forças Armadas brasileiras estariam totalmente profissionalizadas e afastadas da política, eis que nos vemos liderados por um Poder Executivo integrado por nada menos que 3 mil militares; sem falar dos oito ministérios ocupados pelos homens das armas.

Como numa batalha de trincheiras, os militares vinham avançando dia após dia no controle e tutela dos órgãos estatais e das instituições da República, mas se existia uma estratégia bem articulada de ocupação de poder, com a chegada da Covid-19 as peças definitivamente se embaralharam.

Hoje o Brasil caminha a passos largos para se tornar o epicentro mundial da Covid-19, e à medida que a pandemia parece sair do controle, mais os militares tentam controlar o caos sistêmico interno.

Além disso, se antes da Covid-19 havia alguma coesão no establishment brasileiro em torno das reformas neoliberais levadas a cabo pelo Ministério da Economia, com o estouro da crise sanitária, é a cada dia mais evidente o racha entre setores empresariais, a grande mídia, o Congresso Nacional e o Poder Judiciário, que agora se posicionam frontalmente em oposição ao Governo Bolsonaro.

As recentes reuniões entre o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e o presidente do STF, Dias Toffoli, com a presença do ministro “eminência parda” do Palácio do Planalto, general Braga Netto, foram uma sutil tentativa de intimidação e enquadramento de dois poderes da República por parte dos militares instalados no Planalto.

Ao mesmo tempo em que os porões da máquina de desinformação do governo difama adversários e atiça as baixas patentes das Forças Armadas e das polícias militares estaduais (seus fiéis aliados), o país afunda naquela que certamente é a maior crise existencial de sua história.

Como se não bastasse tudo isso, o resto do mundo convive com a perspectiva de arcar com um endividamento público só visto, segundo a revista britânica The Economist, “em meio aos escombros de 1945”.

Para além da própria crise sanitária, as consequências econômicas do pós-pandemia serão devastadoras do ponto de vista fiscal, pois o fechamento compulsório da indústria, escritórios e de vários segmentos do setor de serviços certamente trarão como consequência a queda das receitas dos governos.

Como muitos analistas já vinham notando, o mundo vive o exato momento de transição entre aquilo que já não existe mais e o que ainda está para nascer.

Mesmo antes da pandemia é notória a aceleração da competição interestatal, o que denota o fenômeno de desconcentração de poder que ao longo da história do sistema mundial sempre ocorre nos períodos de declínio dos longos ciclos da política internacional.

Algo que as elites brasileiras, em especial as elites militares – psicologicamente presas em inimigos imaginários como comunistas chineses e “marxistas culturais” – ainda não perceberam, é a dimensão da importância do Brasil no contexto geopolítico deste novo século que se inicia.

Com o esfacelamento das instituições de Bretton Woods e da ordem liberal hegemonizada pelos Estados Unidos, o mundo desenha – e todos nós somos personagens – uma configuração sistêmica ainda não definida. Em processo.

Como ocorrera entre aproximadamente os anos 1550 e 1640, quando o mundo, ainda dominado pela poderosa Espanha, via florescer os movimentos de contestação ao império que construíra seu poder na recém-descoberta América.

Presos à riqueza do ouro e ao sistema de governo medieval que já não correspondia a realidade, os Habsburgo – em sua aliança com o papado – lutavam para que sua hegemonia não se desintegrasse em meio a ascensão dos novíssimos atores do sistema, quais sejam, a França, a Holanda, a Suécia e a Inglaterra.

Naquele momento, a Europa era engolida por uma escalada sem precedente de guerras oriundas daquelas novas realidades de poder, cujos novos atores, emergidos no noroeste do velho continente, não estavam nada dispostos a submeter-se ao poder espanhol.

A tradução daquele cenário foi o aprofundamento do caos sistêmico que viria a ser pacificado apenas com o advento do Tratado de Vestfália. Qualquer semelhança com o momento mundial atual não é mera coincidência, pelo menos para os estudiosos da geopolítica.

Voltando ao ano de 2020, é muito provável que fenômenos até então embrionários se revelem mais claros e ousados no pós-pandemia. A competição tecnológica, mais visível em torno do 5G, tende a se radicalizar em muitas outras áreas. E a busca por recursos naturais/energéticos já é uma realidade e coloca não só a África, mas a própria América do Sul no alvo da nova corrida imperialista que também deverá se aprofundar.

Por enquanto, o establishment brasileiro é um mero espectador das rápidas mudanças que o sistema mundial verá nos próximos anos.

A China, mesmo abatida fortemente pelo meteoro Covid-19, se reinventa em sua política de ajuda humanitária global de combate efetivo ao vírus e foca sua atuação no fortalecimento do projeto de integração eurasiático; em particular na Belt and Road Initiative – BRI.

Demonstrando uma impressionante resiliência, não obstante a forte retraída nas exportações para os países centrais, os chineses viram um aumento de 3,2% com os países aderentes da Nova Rota da Seda. Mesmo não sendo números comparáveis aos anos anteriores, demonstra que os projetos de infraestrutura do BRI não foram afetados tão fortemente pelos efeitos nefastos da crise sanitária.

Nada mais adequado ao pensamento e à forma de conduta da cosmologia confuciana, baseada para além da mera divagação, num ato concreto, um agir.

Assim, os chineses seguem sua jornada rumo ao timão central do sistema mundial, absorvendo conscientemente os pilares da modernidade ocidental, mas sem nunca perder a essência do pensamento de Confúcio, o Tao-to que sempre busca a eficácia para além do mero pensamento.

No próximo mês de junho completam-se sete anos de ininterrupta instabilidade político-institucional no maior país da América Latina. Que a história dos povos mais antigos e os ventos da mudança nos ensinem a guiar o timão do nosso próprio destino.

Fabio Reis Vianna

Escritor e analista geopolítico.

Com informações Monitor Digital


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