Piterson Hageland – O patíbulo cambial do Brasil

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Se existe algo que os brasileiros, de maneira geral, dificilmente contestam é o fato de que a sociedade recebe tantas notícias catastróficas que raramente tem se manifestado com perplexidade em uma série de ocasiões. Isto posto, uma nova intempérie na economia motivada pelo sufocamento cambial país afora também não irá surpreender — quase — ninguém.

Em menos de quinhentos dias de governo, Jair Bolsonaro, o infradotado, e o seu grão-vizir Paulo Guedes, um obcecado pelas utopias neoliberais, transformaram o Brasil em um pandemônio sociopolítico e econômico muito pior do que a nódoa que sempre foi. A execração mundial que o país está sofrendo por culpa das atitudes estólidas e negligentes do Palácio do Planalto é somente uma entre diversas outras consequências que serão acarretadas pelos inimigos do desenvolvimento nacional e seus comparsas. Todavia, o desarranjo da macroeconomia brasileira é profundamente mais corrosivo.

O Banco Central do Brasil (BACEN) vendeu, desde agosto de 2019, aproximadamente US$ 55 bilhões correspondentes às reservas internacionais em operações diretas. Apesar do enorme montante utilizado, o risco permanece uma vez que as decisões do Ministério da Economia foram incapazes de evitar a depreciação hiperbólica do real. Sendo assim, de onde provém essa tensão cambial? É lógico que não procede das transações correntes da balança de pagamentos que escritura as atividades mercantis do país. Aliás, é possível que este gráfico alcance melhorias.

Com a iminente depressão da economia brasileira, que já faz os analistas estipularem uma gravíssima queda de — no mínimo — 7% nas receitas do produto interno bruto (PIB) no período vigente, a demanda por bens importados será reduzida para níveis abaixo das exportações e, por mérito disso, o superávit comercial terminará se amplificando exponencialmente. Os rendimentos despachados para o exterior na forma de lucros e dividendos também contribuem significativamente na composição deste quadro. A equação é bastante simples: a degradação do câmbio somado ao retraimento econômico fatalmente resulta em uma harmonização praticamente instantânea dos contratos externos do Brasil.

O verdadeiro distúrbio ocorre por causa da exorbitante remessa de capital líquido para fora do Brasil sem qualquer interferência governamental. Desde a reta final do Século XX que o inventário financeiro da nação é primordialmente definido pela movimentação de capitais em âmbito internacional. As transações correntes mantêm seu grau de importância; entretanto o fator de incidência precípua nesse caso é a ascensão das expensas com passivos no lugar dos investimentos.

O êxodo de capitais, que intercorre de modo constante no Brasil há quase doze meses, foi drasticamente acentuado por obra do COVID-19. Não obstante, vale ressaltar que tamanho empecilho é verificado em uma gama de países subdesenvolvidos, dado que toda crise de proporções globais desperta um temor generalizado sobre o confisco de ativos e faz com que tal patrimônio seja destinado à recintos de maior segurança. E o colapso socioeconômico instituído pela doença, além de ser o flagelo mais brutal enfrentado pela República Federativa do Brasil até o momento, ainda possui duas lápides.

A primeira é a obliteração da credibilidade do país em todo o planeta. As considerações acerca da incompetência e da parvulez de Jair Bolsonaro, atual líder do Poder Executivo Federal, adquirem potência no cenário geopolítico devido às múltiplas estultícias que o gabinete presidencial cometeu, junto com uma porção de ministérios, a fim de intensificar o caos na saúde pública e em demais áreas do bem-comum. Como as expectativas de uma gestão que não fosse inerte se esgotaram, os acionistas estão optando por depositar seus recursos em outras nações com projetos de governo respaldados pela disciplina e sensatez.

Essa fuga de ativos em larga escala também decorre da — corretíssima e atrasada — prescrição feita pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central do Brasil (COPOM), que determinou a redução da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic). As perspectivas que vislumbravam uma inflação monetária em anexo à letargia da restauração econômica já sugeriam que tal deliberação fosse empregada em 2019. Contudo, esse decréscimo na taxa básica de juros condensou a variável entre as alíquotas internas e externas, desqualificando as ações em moeda local. Este vértice é o segundo epitáfio que tombou diante do Palácio do Planalto e foi tragado pelo mesmo, coagulando a incredulidade dos que ainda ponderavam em manter algum capital de giro no país. Não é à toa que pouquíssimas unidades monetárias têm experimentado um cisalhamento tão vultoso quanto o real nos últimos tempos.

Independentemente dessa profusão de vicissitudes, o BACEN dispõe de mecanismos para anular este imbróglio cambial, e as divícias que integram o monumental estoque das reservas de dólares é o exemplo mais protuberante deste asserto. Com exceção de Barbados, o emolumento de quase US$ 346 bilhões pertencentes ao Brasil é superior a de todas as nações do continente americano, que certamente apresentarão impasses no que tange à balança de pagamentos. Os argentinos foram, sob a tutela de Mauricio Macri, postilhão do sistema financeiro que se hospedou na Quinta Presidencial de Olivos, os primeiros a contrair — novos — empréstimos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) há um biênio e seguem navegando em um oceano de instabilidades macroeconômicas. Os índices da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) exibem com nitidez que o Estado brasileiro não precisa dos subsídios de Wall Street ou de qualquer outro sodalício controlado pelos banqueiros transnacionais, como o Banco Mundial (BIRD) e o Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos (the FED), pois detém meios de consertar sozinho essa falha.

Uma vantagem adicional do Brasil é o regime de câmbio flutuante que passou a vigorar com o “Efeito Samba” e que, neste átimo, prepara a conjuntura nacional para o reaquecimento da economia mediante o acréscimo das exportações, tal como há vinte anos em diferentes setores da agricultura; do comércio e da indústria brasileira. Essa plasticidade viabiliza métodos que absorvem, em sentido parcial ou absoluto, o impacto cambial em virtude do deságio que está se infiltrando no real e dirimindo o seu valor perante as moedas estrangeiras. Se o país tentasse impedir o declínio de sua unidade monetária trabalhando com as suas taxas inteiramente prefixadas sem um rompimento com os esquemas onzenários que a fraude do Choque Nixon implementou, o BACEN seria forçado a torrar uma quantia indubitavelmente maior das reservas de dólares em busca de minorar a fuga de capitais. Isso arremessaria a nação em um horizonte ainda mais deletério que o de agora, onde cerca de US$ 40 bilhões já foram malbaratados por Paulo Guedes e companhia.

Embora pareça sarcasmo na esfera do senso comum, a involução da unidade monetária brasileira pode — em um contexto limitado — amparar a economia por razão da moeda nacional ser, em termos lacônicos, uma cópia do dólar. É pelo intermédio desta premissa que o real favorece o ajuste da balança de pagamentos sobre as transações correntes, visto que incentiva os exportadores a competir e fomenta a alta de preços nas importações. Ao colaborar com as diretrizes de oferta nas exportações e com os grupos que litigam as mercadorias importadas no circuito interno, o elemento numerário introduzido na República Federativa do Brasil em 1 de julho de 1994 acaba cooperando isocronicamente para a manutenção das funções primárias no tocante às regras laborais e econômicas do país.

É através desse prisma que o famoso conceito de que a desvalorização da moeda brasileira prejudica incondicionalmente as despesas públicas torna-se errôneo e necessita ser desfeito com urgência a fim de não incrementar as maledicências do dogmatismo econômico. O que atesta a imperfeição deste juízo é o seguinte: o Governo Federal é credor líquido, e com uma margem bem ampla, justamente em dólares, e a cotação nupérrima de tal unidade monetária supera os gastos com os títulos da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna (DPMFI). Em síntese, os ativos externos do país já ultrapassam distintamente os seus passivos e indexações em real; fora que a Dívida Pública Federal Externa (DPFE) é substancialmente menos onerosa. O coeficiente arquitetado pela minimização dos juros nacionais unido ao encolhimento cambial oferece um lenitivo auspicioso à política orçamentária do Brasil, que continua resistindo — mecanicamente — a implacável recessão do COVID-19.

No entanto, uma questão disfarçada de enigma vem à tona: esse pluralismo tão ínclito constatado em alguns pontos do desabono cambial brasileiro não poderia forjar um vendaval inflacionário no Brasil? No panorama contemporâneo, onde a economia se distrata violentamente, tal perturbação é inverossímil a curto prazo.

Além de não ter saído da masmorra, a inflação transita em um patamar menor do que o almejado pelo BACEN com as orientações do Índice Geral de Preços em Disponibilidade Interna (IGP-DI) e também do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Tais parâmetros são elaborados pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), respectivamente, e concernem aos quatro meses anteriores. Com a proliferação do desemprego e a subsequente escassez do consumo e da produtividade, o lastro cambial reservado à superfície holística dos preços e tarifas é restringido. Logo, a hipótese de maior proximidade com os meridianos socioeconômicos do Brasil é a deflação, pois o câmbio rarefeito drena a intumescência monetária ao sobrepujar em real o valor dos bens e serviços que o país negocia no exterior (tradables).

Concluídas as observações técnicas, que fique rigorosamente claro que nada autoriza o BACEN a desconsiderar repentinamente as escarpas que assomam na órbita cambial do país no intuito de permitir a oscilação indiscriminada da moeda nacional. Esse preceito é completamente heterodoxo — e espúrio — nas instâncias da macroeconomia brasileira, haja vista que a “Banda Diagonal Endógena” foi suplantada há décadas.

Em um ambiente tão soturno como este, repleto de obstáculos inseridos por graves deformações no perímetro econômico; social e político, a tempestade que começa a amedrontar a nação é a suspeita de que o aviltamento do real irá se autossustentar em um futuro nada distante e que tal anomalia será convertida em um interminável desequilíbrio monetário, cambial e fiscal. As reservas internacionais podem ser aplicadas na extrusão desse nevoeiro, impugnando o avanço do desmoronamento da unidade monetária nacional. Sob um ordenamento específico, o BACEN teria a possibilidade de efetuar contratos derivativos (swaps) como vendedor para neutralizar o câncer da especulação e habilitar a demanda por transações de cobertura (hedge), que são isentas do risco das variações tarifárias e não comprometem o estoque de dólares em posse do Brasil. Isso porque a liquidação dos swaps é admitida em qualquer moeda, não importando o seu processo de indexação.

Em resumo, a situação do país é extremamente terrível. Porém, o Estado ainda reúne muitos dispositivos jurídicos e econômicos que inibem o surgimento de um cadafalso nas jazidas do câmbio brasileiro para asfixiar o real com um surto perene nas despesas de capitais. Mas o problema fulcral da economia — e de todos os outros renques políticos — é a ausência de um presidente da República que seja organizado, multisciente, responsável e virtuoso; que detenha um legítimo plano de desenvolução nacionalista e que siga as leis constitucionais que jurou proteger durante a campanha eleitoral. A entropia do governo de Jair Bolsonaro com a peste do COVID-19 já ocupam a galeria de doenças mais nocivas do terceiro decênio do Século XXI: ambas destacam as mazelas sociais do Brasil e difundem a sua vulnerabilidade com um ímpeto atroz.

Autor do Texto: Piterson Hageland — Jornalista literário no segmento metapolítico e sociocultural. Pesquisador de assuntos históricos, filosóficos e aspectos econômicos do Brasil e da Ásia Oriental. Colaborador de periódicos geopolíticos e podcasts. Tradutor, locutor e dublador ocasional. Membro da Ordem dos Jornalistas do Brasil (OJB).


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