Pandemia, petróleo e as implicações para a América Latina

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Por Aníbal García Fernández e Félix Caballero Escalante

Uma das muitas consequências da pandemia é a turbulência que tem criado nos diversos mercados energéticos a nível mundial. Mas além da queda de preços, a Agência Internacional de Energia (AIE) estima que a demanda de petróleo cairá aos níveis de 1995, e a recuperação não será rápida nem homogênea1.

A alteração do mercado petroleiro internacional, resultado da guerra de preços entre Rússia e Arábia Saudita, da guerra comercial entre Estados Unidos e China e da pandemia de Covid-19 não apenas tem impacto nos principais produtores de petróleo, entre eles Estados Unidos, Arábia Saudita e Rússia, mas tem efeito global. Após o colapso de preços, a superprodução e os acordos da OPEP+, existe uma grande incerteza no setor energético, desenhando 2020 como o annus horribilis.

A OPEP+ e a queda de preços

A pandemia de Covid-19 provocou, por sua vez, uma queda da demanda de petróleo a nível mundial de cerca de 30% em comparação ao ano de 2019, gerando mais de 9 milhões de barris diários de superávit, o que gerou uma situação sem precedentes, já que as reservas mundiais de petróleo alcançaram seu pico, levando países a utilizarem navios e vagões-tanque como forma de armazenamento.

Gráfico 1: preço do petróleo (WTI) entre jul/2005 e mar/2020. Imagem via CELAG.

Se somou a essa situação a nova guerra de preços desencadeada no dia 6 de março na 8º Conferência da OPEP+, uma espécia de blitzkrieg (guerra relâmpago), onde Rússia e Arábia Saudita não acordaram uma postura comum em relação às cotas de produção e suas condições, provocando uma queda de mais de 10% dos preços, chegando a níveis inéditos desde a década de 1990.

O grupo, composto pelos países integrantes da Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) junto à Rússia, Estados Unidos, Reino Unido, Noruega e México, chegou em um consenso em abril. Acordaram um corte de produção em três etapas:

• A primeira, durante maio e junho de 2020: a diminuição da produção seria de 9,7 milhões de barris por dia.

• Logo se registraria um aumento gradual: a partir de julho, a redução será de 7,7 milhões de barris por dia.

• De janeiro de 2021 a abril de 2022: 5,8 milhões de barris por dia.

Entretanto, no dia 8 de junho os países participantes do acordo decidiram estender a primeira etapa até julho2, já que, apesar da leve recuperação da demanda sobretudo na Europa e China, esta não é suficiente para aumentar a produção. Como resultado, segundo diversas estimativas, o acordo foi cumprido em 87%. Os países da OPEP cumpriram cerca de 74-77%, chegando a produção total de 24,7 milhões de barris por dia em maio, ou seja, 5,9 milhões de barris a menos por dia em comparação com o mês anterior3, contribuindo para a estabilização dos preços. Isso é e será relevante pois o papel da OPEP na estabilização de preços futuros será crucial, frente a provável queda da produção estadunidense.

O colapso do xisto e a Covid-19

Em 2019 a Ristad Energy, uma empresa de inteligência energética da Noruega, alertou que o panorama para 2020 não seria bom, devido em parte à recessão econômica, à guerra comercial entre China e Estados Unidos, ao enorme endividamento das empresas petroleiras de hidrocarbonetos não-convencionais e aos informes sobre a queda de produção de gás e petróleo de xisto no Texas, que provocaria uma diminuição da produção estadunidense4. Após o surto de Covid-19 na China e sua expansão em todo o mundo, surgiram dois processos que colapsaram os preços do petróleo: a guerra de preços entre Arábia Saudita e Rússia, e o confinamento de metade da população mundial.

Em 2020 se completam quinze anos de produção elevada e constante de xisto (shale) nos Estados Unidos; entretanto isso não reflete necessariamente a força e estabilidade deste setor industrial. Um relatório recente da Deloitte afirma que a indústria de shale minou US$ 450 bilhões de capital investido e teve 190 falências desde 2010. A análise desta agência indica que a sombria posição financeira de muitas companhias e as débeis perspectivas econômicas futuras poderiam desembocar em um processo de consolidação (monopolização) na indústria de xisto5.

Apesar destes prognósticos, a mesma Deloitte – junto à AIE – prevêem que os Estados Unidos voltem a converter-se em um importador de petróleo no curto prazo, até a estabilização dos preços e a extração de xisto volte a ser rentável. No caso da Bacia Permiana nos EUA, o preço rentável supera os US$ 46 por barril, o que dificulta a extração caso o preço não se recupere nos próximos meses em um setor acostumado a trabalhar com empresas superendividadas, com superprodução6 e com aumento fictício de reservas7.

A Rússia frente o cenário de Covid-19

A Federação Russa, localizada entre os 3 maiores produtores de petróleo, tem uma produção atual de 8,5 milhões de barris diários, um nível inédito desde 2003 devido ao cumprimento de 96% de sua cota de produção acordada no marco da OPEP+8.

Vale ressaltar que a receita advinda do petróleo e gás no orçamento federal caiu cerca de 70% em relação ao ano anterior, cerca de US$ 3 bilhões, levando também em consideração a queda das tarifas de exportação em mais de 7 vezes, de US$ 52 a US$7, o que abalou fortemente o orçamento federal9.

Como mencionado, a recuperação da demanda não será homogênea, pois a retomada das atividades após a primeira onda de Covid-19 difere em cada país. Em relação à exportação do petróleo russo (ural), as vendas firmadas para julho10 nos portos europeus serão de 540 mil barris diários, ou seja, uma redução de 42% em relação a junho, um nível inédito desde 2003.

Por outro lado, destaca-se a alta demanda por este tipo de petróleo tanto na China11 quanto nos Estados Unidos. Chama a atenção que os Estados Unidos começaram a comprar urais, devido às sanções impostas pelo Departamento do Tesouro à petroleira estatal venezuelana, a PDVSA12. Os portais de navegação Marinetraffic e Vesselfinder reportaram em junho dez navios Aframax carregados de urais, com cerca de 900 mil barris cada, se aproximando da costa estadunidense13.

Portanto, dada a redução da produção russa e o aumenta da demanda de urais na China e Estados Unidos, o preço está alto e às vezes é comercializado até US$ 2,4 dólares acima do brent, e assim, nas refinarias ao sul da Europa – projetadas para este tipo de petróleo – se torna caro demais adquirir urais e o substituem por petróleo estadunidense, norueguês ou de África Ocidental14. Em junho, a Polônia e os Estados Unidos firmaram acordos para expandir a presença estadunidense na Polônia com gás natural e um programa de energia nuclear, entre outros15.

Mesmo assim, nem tudo é negativo para a indústria petroleira russa. Apesar da volatilidade e instabilidade dos preços, o nível de investimento para a exploração de novos poços tem se mantido e está se discutindo a construção de armazéns subterrâneos para o petróleo bruto, o que fortalecerá a segurança energética do país e sua posição geopolítica na região caso o cenário de déficit se confirme.

Implicações para a América Latina

Para os países latino americanos produtores de petróleo, as consequências do desajuste de oferta e demanda, os preços futuros e a especulação financeira, somada à pandemia, impactaram de modo diferente. Para o México e Venezuela, os principais impactos estão nos orçamentos que serão reduzidos nos anos seguintes e na redução da produção.

Na Venezuela se soma o bloqueio e as sanções ao setor energético. No caso do México, destaca-se que uma redução da produção de gás nos Estados Unidos terá efeitos enormes, pois após a reforma energética de 2013, o país aumentou sua dependência do gás natural e da gasolina estadunidense, consequências essas que estão sendo revertidas pelo governo atual16. Os leilões de licitações de poços brasileiros têm poucos participantes desde antes da pandemia17, e com isso a situação se agrava (foi cancelado, inclusive, o 17º leilão18). Deve-se lembrar que o Brasil se encontra em processo de privatização de sua indústria, o que o situa em uma posição de maior vulnerabilidade19, assim como o Equador20.

Em relação aos Estados Unidos, segundo o último relatório mensal da EIA, as importações provenientes do Brasil e Colômbia caíram nos três primeiros meses de 2020 em relação a 2019. No caso do México cresceram, passando dos 665 mil barris diários entre janeiro e março de 2019 para 722 mil no mesmo período de 2020. O caso do Equador é particular pois, após o ajuste do Fundo Monetário Internacional (FMI) e dos protestos pelo aumento de preço da gasolina, voltou a exportar petróleo bruto aos Estados Unidos. Além disso, já não é mais membro da OPEP21. Em termos gerais, a América Latina enfrenta uma grande incerteza mundial, endividamento de empresas para-estatais e uma maior disputa geopolítica por recursos, um processo anterior à pandemia.

Várias instituições e think tanks22 asseguram o que poderia ser um annus horribilis para a economia mundial e sobretudo para o setor energético, o petroleiro em particular. Frente esse panorama, não é de estranhar que o capitalismo fóssil (todas as empresas energéticas de extração de hidrocarbonetos, automobilísticas, linhas aéreas e turismo, principalmente) perceba no Estados e nos apoios fiscais, resgates e outros mecanismos financeiros, além da reestruturação total da indústria petroleira (incluindo o crescente monopólio), o modo de sair da atual crise econômica agravada pela Covid-1923. No caso dos Estados Unidos, os apoios começaram24 e somam-se a uma larga lista de apoios de todo tipo25.

Para a Rússia, o desajuste dos preços de referência agravado pela pandemia podem deixar o ural mais caro que o brent, tendência que vem se incrementando desde 2018, e poderia perder o mercado europeu e causar uma maior distorção nos contratos futuros. Em relação à Europa, o abastecimento de petróleo para a região será chave, pois em 2019 os fornecimentos provenientes do Irã, Venezuela e Líbia diminuíram, aumentando o abastecimento advindo da Rússia. Com a pandemia e o desajuste de preços, começou o fornecimento estadunidense e serão fundamentais a reabertura das atividades, o restabelecimento da demanda e a estabilização de preços para ver como se reacomoda o abastecimento, e as repercussões que isso terá na Europa, Oriente Médio e Rússia.

No caso latino americano, os principais problemas serão orçamentários, a vulnerabilidade energética, a instabilidade de preços, o escasso acesso a recursos financeiros para reestruturar dívidas contraídas por empresas para-estatais e o pelo governo, o que pode derivar em maiores privatizações (processo que já começou no Brasil, Equador e em menor medida na Colômbia), ainda que também haja casos de recuperação de infraestrutura, como no México. E por último e de grande relevância, está o colapso climático em curso, tema que engloba os processos descritos e que poderia ter repercussões catastróficas não apenas para os seres humanos, mas também para a flora e fauna mundial.

Com informações Celag

1 https://www.iea.org/reports/global-energy-review-2020/implications#abstract

2 Uma proposta da Rússia, já que a Arábia Saudita sugeriu extender os corte até o final de 2020.

3 https://tass.ru/ekonomika/8753677

4 https://lta.reuters.com/articulo/petroleo-eeuu-panorama-idLTAKBN1Z110O

5 https://www2.deloitte.com/us/en/pages/energy-and-resources/articles/covid-19-implications-for-us-shale-industry.html

6 https://energyandcommerce.com.mx/fracking/

7 https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-06-23/shale-oil-stocks-investors-question-industry-s-performance?sref=866aH6XX

8 https://www.rbc.ru/business/02/06/2020/5ed657f39a7947f50ab09a2f?from=newsfeed

9 https://www.oilexp.ru/news/russia/vygody-rossii-v-neftyanoj-sdelke-opek-video/210375/

10 As vendas para julho são negociadas em junho, portanto, um mês antes de saber como serão a demanda e preços futuros.

11 A China comprou um recorde de 1,6 milhão de toneladas de petróleo russo durante as 4 semanas seguintes, aproveitando os baixos preços do ural, combinado ao colapso da demanda na Europa. https://www.gazeta.ru/business/2020/06/08/13111555.shtml

12 https://www.eia.gov/totalenergy/data/monthly/pdf/mer.pdf p.67.

13 https://ria.ru/20200613/1572799229.html

14 https://www.finanz.ru/novosti/birzhevyye-tovary/rossiya-sdaet-neftyanoy-rynok-evropy-eksport-urals-rukhnul-na-40percent-1029346588

15 https://www.energy.gov/articles/us-poland-cooperation-energy

16 http://geocomunes.org/Analisis_PDF/Territorializacion_RE_GeoComunes.pdf

17 https://www.milenio.com/negocios/financial-times/historica-decepcion-en-ronda-petrolera-de-brasil

18 https://www.bnamericas.com/es/analisis/prospectos-fronterizos-de-brasil-en-duda-tras-suspension-de-17-ronda-de-petroleo-y-gas

19 https://www.celag.org/brasil-for-sale-bolsonaro-y-estados-unidos/ tradução em: https://novamargem.com.br/2020/03/14/brasil-for-sale-bolsonaro-e-os-estados-unidos/

20 https://www.elcomercio.com/actualidad/ecuador-licitacion-refineria-petroleo-negocios.html

21 https://www.eia.gov/totalenergy/data/monthly/pdf/mer.pdf p.67

22 https://www.celag.org/como-sera-el-mundo-postpandemia-think-tanks-y-escenarios/

23 https://www.iea.org/reports/global-energy-review-2020/implications#abstract

24 https://www.energy.gov/articles/doe-announces-intent-provide-122m-establish-coal-products-innovation-centers

25 http://priceofoil.org/content/uploads/2017/10/OCI_US-Fossil-Fuel-Subs-2015-16_Final_Oct2017.pdf


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