Piterson Hageland — Votos “inválidos” e abstenções venceram as Eleições 2020

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Desde o epílogo dos Protestos de 2013 que venho observando a seguinte frase popular como uma anedota de propriedades fictícias: “No final de tudo, o povo sempre vence”.

Quero frisar com o máximo de transparência que não carrego aquele feixe de opiniões volúveis que reiteram — sem o menor fundamento — a impossibilidade de mudanças através de reivindicações sociopolíticas. Qualquer indivíduo com o mínimo de compreensão da realidade e dos eventos históricos é capaz de perceber que não há meios de se adquirir cidadania efetiva sem que atividades insurgentes ocorram, e seguramente já fiz com que tamanha perspectiva recebesse a nitidez adequada em textos predecessores. A verdadeira desgraça é concluir que isso não encontra respaldo no Brasil contemporâneo porque as maledicências digitais reverberam com tanta facilidade que acabam nublando as mesmas células revolucionárias que os tarimbeiros do ciberespaço juram apoiar.

Não obstante ao que expus há pouco, também enxergo que os governantes são, de certa forma, induzidos a atender as demandas sociais enfatizadas pelo contexto. É um processo inevitável, dado que os políticos utilizam este recurso na intenção de atrair seguidores infinitamente. Alguns casos irrompem de modo cinematográfico e estentórico, tal como a supracitada Revolta dos Vinte Centavos e as Diretas Já, marco inicial da Sexta República do Brasil e oficialmente consubstancializada em 15 de novembro de 1989. Porém, existem outras alterações que os brasileiros efetuam de maneira discreta, como a abolição do voto obrigatório.

O Brasil pertence a um limitado grupo de países que ainda mantêm o sufrágio universal como um ato compulsório, isto é, acima das responsabilidades e das prerrogativas inerentes ao ser humano. O Artigo 14 da Constituição Federal estabelece que o comparecimento às urnas é imprescindível. Todavia, esse absolutismo vem sofrendo uma redução drástica, haja vista que aproximadamente 30% da população se recusa a escolher um candidato ou então se abstém do litígio. E nestas eleições sindêmicas, o fenômeno se difundiu em paridade com o transtorno viral que, sozinho, amplificaria as brechas que já distanciam a sociedade das cabines eleitorais há anos. Não é à toa que, em um acrisolamento do sumpto geral de votos brancos; nulos e abjurações, 54% dos cariocas e 45% dos paulistanos resolveram não “arruinar o domingo com essa farsa”, assumindo uma posição contra todo o modelo hegemônico incidente. E nenhum pretexto é válido quando o seu objetivo é relativizar um êxodo tão cristalino assim, pois outras quinze capitais também manifestaram um índice de refusão entre 31% e 51%. Belém foi a única exceção, com 27%; contudo, não dissolve o fato de que a verdadeira campeã deste escrutínio é a rejeição multilateral.

O senso comum define que essa objeção transcendental é uma das maiores sequelas que a violenta crise democrática do Brasil hodierno produziu mediante a frustração societária devido à perversão dos governantes. Esse motivo, no entanto, é insuficiente para determinar quem merece o título de culpado pelas adversidades nacionais. É óbvio que este vendaval foi deflagrado pelos congressistas, mas quando os mesmos empregaram seus poderes comitentes a fim de outorgar que o Estado incentivasse a deserção dos eleitores. O próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE) autorizou que os faltantes se justificassem por intermédio de aplicativos eletrônicos em um prazo de dois meses inteiros a contar do dia em que o pleito foi realizado. Agora basta um computador ou telefone para isso, sem a necessidade de atendimento presencial. O valor das multas também não apavora os brasileiros, já que o coeficiente 33,02 da Unidade Fiscal de Referência (UFIR) causa uma oscilação de 3% a 10% em seu preço. Em síntese, o gasto líquido é de R$ 1,05 a R$ 3,51. Um lanche nas feiras de sábado custa o dobro — e desconheço quem ignore a barraca do pastel.

Tantos “avanços” modificaram a órbita sociopolítica do Brasil e acarretaram uma conjuntura semelhante à de nações onde o povo não é inelutavelmente constrangido ao sufrágio e os postulantes executam duas campanhas saturadas de elementos mercadológicos: a primeira é a tradicional súplica para angariar os votos dos cidadãos, e a segunda — e não menos importante — é uma estratégia de propaganda configurada no intuito de aliciar a comunidade a se dirigir aos locais de votação e optar por um dos requerentes.

Nesta época completamente singular, a filáucia do litígio coercitivo se desintegra por efeito de seu reacionarismo banal e de sua idiossincrasia plutocrata. E como ninguém se ofereceu para homologar os projetos acerca do voto facultativo que o senador José Reguffe trouxe às sessões plenárias ainda como deputado federal, convertendo-as em lei nacional via Proposta de Emenda à Constituição (PEC), o mérito da “desburocratização eleitoral” aqui é somente do TSE.

A derrota tonitruante que uma considerável parte da sociedade impôs até em “proponentes” que lograram êxito ao ultrapassar seu número de epígonos com os votos descartados pela Justiça Eleitoral reflete que o país não detém aquela empolgação da década de 1980 faz muito tempo. Os verões escaldantes pós-Regime Militar já superaram em catorze ensejos a quantidade de invernos que essa manobra sorrelfa implementou. As pessoas, em um sentido lacônico, cansaram de ter que selecionar aberrações ou esclarecer qual foi a razão que as privaram de anuir com estes parasitas. O colapso do Decreto-lei 2283/1986, traduzido como Plano Cruzado, já desiludiu a população antes que o “Caçador de Marajás” — eufemismo para “Obnóxio do Sistema Financeiro Internacional” — emergisse do pântano. Decorridos quase trinta outonos, um golem de cólera e inépcia surgiu bradando o que o herdeiro da Casa da Dinda havia prometido e não cumpriu. Os brasileiros, que endossaram seus devaneios tóxicos e ambivalentes, já entendem que a sua famigerada “nova política” é algo vazio e que a dinâmica do Brasil jamais proporcionou fórmulas de exterminá-la como se fosse um mosquito irrelevante. E o lado oposto do espectro também fracassou miseravelmente, pois sua cruzada reducionista afirmava ter soluções tão inovadoras quanto mudar de roupa ao sair de um balneário.

Os entusiastas do voto imperioso costumam mencionar o ilustre adágio de Platão: “Ser governado pelos inferiores é a consequência para os que não participam da política.”. Essa alegoria é incondicionalmente nula a partir do momento em que se admite “política” como sinônimo de “eleições” e renunciam à cooperação nos âmbitos laborais e discentes. Se meu argumento é rúptil, por que a divulgação do sufrágio para conselheiro tutelar não é divulgada em termos equânimes? Não é sobre afinidade ou ojeriza à política, e sim a interpretação de como ela acontece no Brasil: repleta de maquinações e benefícios para seus caudatários em detrimento das expectativas da nação, que padece sem o retorno dos incontáveis tributos que subvenciona continuadamente. Os países do Hemisfério Norte, que rescindiram as diretrizes coativas que imobilizavam seus escrutínios, raramente apresentam taxas que extrapolam os 25% no que tange aos círculos que não elegem impetrante algum. E por mais insólito que pareça, os brasileiros estão se nivelando aos habitantes da porção boreal da Terra neste aspecto, visto que o sortilégio comercial ostentado na publicidade eleitoreira já não é tão romântico.

As disposições em contrário do Artigo 14 da Carta Magna do Brasil foram, na prática, revogadas em prol da normatização que a sociedade atual permanece exigindo. Para resumir: solicitamos que as eleições adotem formalmente o voto opcional, sem embargos e demais restrições inúteis, posto que o significado dessa injunção evaporou. O TSE decifrou a mensagem. Os políticos vão deletá-la ou tentarão recorrer à lógica para escapar da proscrição nos certames subsequentes? Não emitimos o título eleitoral em uma caixa de detritos orgânicos, e por isso não aceitamos increpações de pústulas que menosprezam a legitimidade semântica da política.

Autor do Texto: Piterson Hageland — Jornalista literário no segmento metapolítico e sociocultural. Pesquisador de assuntos históricos, filosóficos e aspectos econômicos do Brasil e da Ásia Oriental. Colaborador de periódicos geopolíticos e podcasts. Tradutor, locutor e dublador ocasional. Membro da Ordem dos Jornalistas do Brasil (OJB).


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